#2 - Introdução
Todas as espécies de pimenta são nativas da América do Sul e de partes da América Central. Todas. Ué, mas e a pimenta do reino, que os europeus iam buscar na Índia na época das navegações? Bem, essa especiaria não é pimenta. Na verdade, ela é a pimenta verdadeira - todas as outras são um pequeno mal entendido.
Quando Colombo pisou na América, seu mundinho de colonizador mediterrâneo conhecia apenas os temperos das rotas comerciais com o oriente, dentre eles, a pimenta do reino, que é picante. Ao experimentar o fruto da capsicum, oferecida pelos nativos do Novo Mundo, sentiu o gosto ardido, e pensou logo no tempero indiano. Depois, de volta à Europa, fez o nome “pimenta” colar. Por causa disso, ainda hoje muita gente pensa que pimenta do reino é uma variedade da espécie capsicum, embora a especiaria esteja em outro canto da botânica.
Na língua inglesa, o nome pepper, que é de raiz germânica, costuma ser usado para se referir à pimentas que não ardem, enquanto chilli denomina as pimentas ardidas. A origem dessa diferenciação está entrelaçada com uma herança linguística de dialetos astecas amplamente falados no território que hoje é o México, e que foram fagocitados pela língua dos colonizadores de forma não muito diferente de como ainda hoje nós brasileiros falamos todos um pouco de tupi.
De qualquer modo, sabemos atualmente que as pimentas se espalharam pelo mundo e são parte importante de culinárias riquíssimas como a do sudeste asiático - ironicamente, os ingleses contemporâneos mal jogam um salzinho no peixe com batata. Nesse tempo que nos separa dos colonizadores europeus, as pimentas ganharam muitas formas, muitas cores, muitos cheiros, e uma diversidade inacreditável de níveis de picância.
E, embora as pimentas sejam autogâmicas - polinizam-se a si próprias - séculos de domesticação e polinização cruzada produziram as mais exóticas variedades de frutos. Tal variedade, no entanto, se resume à 5 das 26 espécies que compõem o gênero capsicum. São elas: capsicum annuum, capsicum chinense, capsicum baccatum, capsicum frutescens e capsicum pubescens.
Como consequência disso, em 1912, Wilbur Scoville, um farmacologista estadunidense, criou a Escala de Scoville, ou Scoville Heat Units (SHU). Antigamente, a escala era medida com base na quantidade de vezes que uma amostra de pimenta precisava ser diluída em solução açucarada para que sua ardência fosse completamente neutralizada. Hoje, são máquinas chatas de nome difícil que fazem o trabalho duro, mas a escala se tornou supostamente mais precisa.
A ardência da pimenta decorre da concentração de capsaicinoides, um conjunto de compostos lipossolúveis dos quais o mais abundante é a capsaicina. Quanto maior a concentração de capsaicina e outros capsaicinoides, maior a ardência. Porém, o desenvolvimento de capsaicinoides, que se dá numa membrana interna na qual se agarram as sementes, depende de vários fatores. Este é mais um exemplo do que eu estava falando no prefácio: o diabo está nos detalhes.
É bom saber que a famosa pimenta malagueta mede 120.000 SHU. Mas isso não compete de forma alguma com o clima, a terra, o ambiente, quando chega a hora da planta produzir frutos. Já experimentei malaguetas que ardiam muito pouco, mas também já queimei a língua com elas. Não se pode presumir que conhecemos as pimentas só porque sabemos quem são (vale para pessoas). Da mesma maneira, a escala de Scoville não é determinante da picância da pimenta, embora funcione bem como referência.
No Brasil, as pimentas que ultrapassam 1 milhão SHU são comercialmente chamadas nucleares. São mais raras por aqui, embora sejam abundantes na gringa, muito por conta de leis de importação de plantas e animais. Tais leis existem para prevenir desequilíbrios ecológicos, pois ao importar uma simples semente, você pode estar trazendo para nosso ecossistema esporos de um fungo ou bactéria invasora. Daí que eu, particularmente, encontrei em mercados - e online - poucas pimentas que se consideram nucleares, dentre elas: Naga Viper, Bhut Jolokia (a famosa Ghost Pepper, e suas variedades, como a chocolate e a aimoré), 7 Pot Barrackpore (da família 7 Pot), Trindad Scorpion (bem como a Scorpion amarela, oliva e chocolate), e a recordista Carolina Reaper (além da amarela, chocolate e peach).
Ao longo das próximas semanas, trataremos de temas mais práticos. Na segunda que vem, veremos quais os primeiros passos para começar o cultivo de pimentas, o que envolve técnicas de germinação e preparo do solo, e que demanda, de antemão, alguma ideia de como pés de pimenta se desenvolvem. Depois disso, reservarei edições para falar de fertilização, prevenção e tratamento de pragas, manutenção das plantas e do solo, com técnicas de poda e neutralização do pH do substrato. Ao falar desses tópicos, quero trazer especialmente minha própria experiência, visto que, como também mencionei no prefácio, muita coisa divergiu do que eu havia estudado, ou do que me foi transmitido por experiências alheias, ou do que é tido como sabedoria popular nas questões de jardinagem.
Porque a sabedoria popular às vezes ajuda, às vezes atrapalha. Infelizmente não tenho o dedo verde de qualquer vovô ou vovó com quintal em casa, que faz florescer qualquer coisa que dê flores, usando somente umas cascas de ovo e borra de café. Mas o que dá certo para a maioria das plantas pode não dar certo para as pimentas - e se você usa borra de café, logo vou te contar porquê isso não é boa ideia.
Por fim, a vida pimenteira na cultura popular pode ser confusa pelas interpolações regionalísticas que naturalmente ocorrem neste país continental. As pimentas como são conhecidas no sudeste levam outro nome no nordeste, e no meio disto tudo, os povos nativos tem seus próprios termos. Não só isso: os povos nativos de outros cantos da América Latina também nos trazem nomes que são lugar comum, tais como “aji”, termo peruano para pimentas de cheiro - e outro nome da dedo de moça.
No sudeste, a cultura pimenteira gira em torno de apenas meia dúzia de pimentas (com exceção de Minas Gerais, que está há anos-luz na frente do Rio, São Paulo e Espírito Santo, para não falar dos estados sulistas). Para quem ama pimentas, o Mercado Central em BH é uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno. Boa parte das minhas variedades vieram de lá, e são coisas que não se encontram pelo RJ ou SP (ao menos, não com um rótulo que não seja genérico). Daí que, para quem é do sudeste e não mora em Minas Gerais, o que se tem para plantar é caiena vermelha, biquinho, malagueta, cumari do Pará e com um pouco de sorte, uma habanero vermelha, que já é bem quente. E a tal da dedo de moça? E a tal da pimenta vermelha?
Estes são termos genéricos, um popular, o outro comercial, para denominar qualquer pimenta que seja vermelha e alongada. A verdade é que dedo de moça é uma variedade mais ou menos genérica da espécie capsicum baccatum, enquanto a pimenta vermelha é só uma convenção criada por distribuidores para preencher rótulo de molho. Metade das pimentas conhecidas é vermelha, então o nome “pimenta vermelha”, evidentemente, não diz muita coisa.
Daí que essa questão da taxonomia tem uma certa importância para quem quer se aprofundar em colecionar variedades mais específicas. E será um tema constante nos textos que trarei aqui.
Dito tudo isto, estamos quase prontos para falarmos de assuntos mais práticos, razão pela qual a maioria de vocês está aqui. Assim, nas próximas semanas, desmistificaremos as dificuldades do cultivo de capsicum, e aprenderemos a ouvi-las, a observá-las, a tratá-las com carinho. Compreenderemos o ritmo com que essas plantas se desenvolvem, e será este o ritmo em que dançaremos a canção das estações. Porque embora não sejam fotoperiódicas (não alteram metabolismo com base nas horas de luz ao longo do ano), elas são incrivelmente sazonais. E compreendendo o aspecto sazonal de uma planta perene, conseguiremos mantê-la viva, saudável e prolífica por muitos anos.
Hoje ficamos por aqui! E claro, tudo dando certo, nos veremos semana que vem.
Uma excelente semana a todos.